Mais do que tempo de recuperação, é preciso tempo para recuperar. E dizem que o tempo é o melhor amigo. Quem passa por isto perde a conta ao número de vezes que nos dizem que é super normal, que acontece, que estatisticamente as probabilidades aumentam conforme vamos tendo mais filhos. Quem passa por isto sabe que custa olhar ao espelho depois, que tivemos um bebé connosco, e que ele agora já não está. Sabe que custa o equilíbrio do corpo que passa de um estado "super hormonas" para um estado "zero tudo". A ressaca é grande, o cansaço é enorme. Mas a vida precisa continuar, quem tem já filhos em casa precisa de lá estar para eles, quem não tem precisa de cair, levantar e ganhar força porque com certeza quer voltar a tentar. Quem tinha dúvidas sobre ter mais um, depois disto fica ainda com mais dúvidas: valerá a pena tentar e correr o risco de uma nova perda?
Ainda não me consigo olhar ao espelho, faz-me impressão, até porque fico mais bonita quando estou grávida e nos meus pós-gravidezes fico um caco: pele oleosa, cabelo oleoso, borbulhas, inchaço, retenção. Parece um pós exactamente igual aqueles em que tive um bebé. E isso é duro. O mais duro de tudo, olhar para mim, para o meu corpo, estar virado do avesso, mas não ter nada como contrapartida. Mas a vida continua, a minha continuou. Não quis parar, não me permiti parar, mas eu sou assim e este é o meu "luto".
No dia 24 à noite teria sido suposto fazer a indução do aborto em casa. De 23 para 24 não dormi, não me sentia capaz de fazer aquilo sozinha, o medo era demasiado grande, as dúvidas imensas. Como é que o meu corpo ia reagir ao Misoprostol, se já antes no meu primeiro filho quando me provocaram uma indução do parto com esse mesmo fármaco nada tinha acontecido? O que é que ia acontecer às minhas suturas uterinas (fruto de duas cesarianas) quando eu sabia que não induzem partos com esse medicamento quando já houve uma cesariana prévia e eu tinha duas? Como é que eu poderia ter essas dúvidas e ainda assim fazê-lo sozinha? Resolvi ir a umas urgências e esperar, acalmar-me para conseguir explicar e ter a sorte de apanhar uma médica que me quisesse ouvir, e que não achasse que eu era apenas mais uma histérica. Tive essa sorte. Ouviram-me, disseram-me que tudo era legítimo, e que as dúvidas eram pertinentes. Pediram-me para dar entrada sábado de manhãzinha e cuidariam de mim.
Cheguei perto das 09h, estavam duas médicas avisadas e à espera que eu chegasse. Falámos, disseram-me que um cólo do útero que não reage a uma indução da primeira vez, dificilmente reage a uma segunda. Mas íamos tentar, colocando uma laminária lá bem no fundo para forçar alguma dilatação. O cólo não respondeu aos primeiros dois comprimidos, mas o saco com o embrião já se começavam a soltar para o sitio certo. As dores das contrações são duras, a barriga parece que tem um balão de água lá enfiado dentro. Colocaram mais 3 comprimidos, já ultrapassando a dose recomendada mas como estava a ser vigiada iam arriscar. As dores aumentaram mas nem sinais de sangue ou de expulsão, as 17h desci para o bloco. Anestesia geral, às 18h20 acordei no recobro, com umas enfermeiras simpáticas a perguntar se tinha dores. Tudo ok. Logo veio a médica. O meu cólo é de ferro, mas graças à laminária que lá colocaram conseguiram entrar com o tubo de aspiração. E aspiraram tudo, fiquei limpa, e graças à laminária não foi necessário curretagem. Diz que me portei bem, mas ela é que foi exímia. Ouviram uma paciente, e entre conversas e medos legítimos chegou-se à melhor solução. Saí de lá já de noite, limpinha, vazia.
Enquanto esperava, desesperava, e eu não sirvo para isso. Ontem fez uma semana em que soube que havia qualquer coisa errada, e o meu corpo, alegremente continuava sem fazer qualquer trabalho. Desesperei a esperar e enviei mensagem ao médico a pedir para ir ter com ele hoje. Não queria continuar nisto. Consulta rápida apenas para me dar a receita do Misoprostol que iniciarei amanhã à noite em casa. E depois espero. Se durante a noite nada acontecer, volto a colocar mais dois comprimidos sábado de manhã, e espero. E é isto. Rezo para que tudo corra bem, que não haja nenhuma complicação e que este pesadelo acabe rápido. Ainda não estou em mim na quantidade de mal que estou a fazer ao meu corpo sem que daí advenham quaisquer frutos. Ainda me pergunto como há mulheres que fazem uma IVG só porque sim e quando não existe um motivo de força maior. E se antes já me fazia alguma confusão, hoje que vou passar pelo mesmo processo que elas, que tem riscos associados, não consigo entender.
Depois da tempestade, mais chuva. Obstetra ligou-me ontem já ao fim do dia, as as opções são duas no caso de aborto retido: i) recorrer de imediato ao recurso de medicamentos que irão auxiliar a expulsão; ii) esperar que o corpo perceba que o embrião não apresenta batimentos cardíacos e ele próprio iniciar o trabalho de expulsão. Dizem que a natureza é sábia, mas o meu corpo já me falhou nestas questões reprodutoras. A primeira opção é mais pesada a nível físico, e menos a nível psicológico, porque a espera pode ser dura para uma mulher que está grávida de um bebé morto. A segunda opção costuma ser mais eficaz e o corpo na maioria das vezes consegue expulsar tudo sem ser necessária raspagem/curretagem. A segunda opção pode sempre culminar na primeira e esse é um risco que eu optei por correr. Vou esperar ainda que não acredite que o meu corpo fará porra alguma. Espero 15 dias e no fim ligo ao médico para avaliar o que fazer. Entretanto vou esforçar-me, correr, saltar e se calhar recorrer à ocitocina. Esperam-me 15 dias duros, em que todos os dias que me olhar ao espelho vou lembrar-me que estou grávida sem o estar.
Hoje vi o meu terceiro bebé, o filho que nunca chegarei a conhecer. Hoje soube que ele estava lá, já sem batimentos cardíacos, imóvel naquele saco imenso. Mantive-me fria como sempre, sem lágrimas, porque eu sou assim, e esta dor é só minha. Partilhei com muito pouca gente esta terceira gravidez, pelo que também não partilharei com muito mais esta perda. A dor é estranha, quase platónica, a dor de ter um ser morto dentro de mim é esquisita. Sem saber muito bem quais os próximos passos, sem saber quando é que o meu corpo vai perceber que não faz sentido manter-me grávida. Grávida de 10 semanas mas sem bebé. Desde o início que tinha um mau feeling, partilhei-o várias vezes com o meu marido. E uma vez mais se confirma, nós mães temos aquele instinto.
Agora só quero alguma paz, só quero fechar este assunto, e prosseguir.
Foi no mês de Dezembro, perto do Natal que descobri que estava grávida, sentia-me esquisita, com sono e mal disposta. Sempre agoniada. Achei difícil, mas resolvi fazer o teste, num domingo, marido nas compras com os miúdos, cinco da tarde, e teste positivo. 2-3 semanas dizia o famoso "clearblue". Mandei um grande m**** e enviei whatsapp ao marido. Não sou boa em surpresas, encantos e floreados. E no fundo não queria. Queria e não queria. Sempre achei que seria incapaz de gerar de forma natural, e portanto estava mentalizada de que quando quisesse ia à Ginemed e colocava o embrião.
Este cepticismo todo com que passei a encarar a vida, foi transposto para o meu dia-a-dia. O marido tentava falar sobre o assunto e eu desviava-me do mesmo. E tive assim até o dia 29 de Dezembro. Fui visitar o meu querido obstetra, e as dúvidas, as minhas, começaram aí. Ecografia feita, saco em sítio correcto e vesícula vitelina visível. Só isso. Achei que viria mais, era altura para se ver mais, mas os médicos não nos ouvem e eu também em negação continuava. E continuei. Fiz as análises da praxe e hoje voltei para datar esta não gravidez.
Chego à Cuf em modo autómato, espero duas horas em modo autómato, e quando o obstetra começa a ecografia e diz, "bem não vejo embrião nenhum, apenas ali um género de esboço" em modo autómato continuei. "Vai ter de repetir, desta vez com médica especialista em ecografias fetais". Tudo bem, saí de lá e não perguntei nada, o que quereria aquilo dizer, fazendo contas à cabeça, e em matemáticas muito optimistas o mínimo dos mínimos que poderia estar seriam 8 semanas. Sexta-feira volto para datar a minha não gravidez, e se o instinto não me falhar, à lista da infertilidade juntarei também uma gravidez anembrionária.